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“MEMÓRIAS DA CIDADE” RESGATA HISTÓRIA E IDENTIDADE AFRO-BRASILEIRA NO INTERIOR PAULISTA

Postado à, 0 dias atrás | 10 minutos de leitura

“MEMÓRIAS DA CIDADE” RESGATA HISTÓRIA E IDENTIDADE AFRO-BRASILEIRA NO INTERIOR PAULISTA

►Adriano Vaz e a arqueóloga Silvia Correa

 

A memória é um ato de justiça”: Adriano Vaz lança documentário Memórias da Cidade sobre a Fazenda Pilão D’Água, em Itapeva

Roteirista, diretor e realizador audiovisual, Adriano Vaz leva às telas o documentário “Memórias da Cidade”, uma produção que une arte, pesquisa e compromisso social para revisitar um dos mais importantes marcos históricos do sudoeste de São Paulo: a Fazenda Pilão D’Água, em Itapeva (SP). 

Na sequência a equipe do Memórias da Cidade.

►Elaine Alves participou do projeto.

Confira a entrevista com Adriano:


FOLHA DE PIRAJU – O que motivou a criação do documentário “Memórias da Cidade”?
ADRIANO – A motivação vem do desejo de resgatar o que o tempo e o descaso quase apagaram. A Fazenda Pilão D’Água, em Itapeva, é um marco histórico que guarda as origens do tropeirismo e da presença afro-brasileira na região. Apesar de seu valor simbólico e patrimonial, permanece esquecida e em ruínas.
O documentário nasceu da vontade de transformar esse silêncio em escuta — de dar visibilidade à história dos que realmente construíram esse território. O trabalho da arqueóloga Sílvia Corrêa Marques, que estudou a fazenda em profundidade, foi essencial nesse processo. Seu olhar sobre os vestígios deixados pelos trabalhadores escravizados e sobre a resistência expressa nos muros, nas estruturas e na paisagem inspirou o filme e deu a ele um sentido maior: o de transformar pesquisa e memória em experiência sensível.
O encontro entre arte e ciência é o ponto de partida de Memórias da Cidade.


FOLHA DE PIRAJU – Qual o principal foco da narrativa?
ADRIANO – O filme não se limita a recontar o passado. Ele propõe uma reflexão sobre o presente e sobre como lidamos com nossa memória coletiva.
A Fazenda Pilão D’Água é o fio condutor que nos leva a discutir o Brasil profundo, com suas contradições, silêncios e desigualdades, mas também sua capacidade de resistência. Muito se fala sobre o tropeirismo, mas raramente sobre os escravizados que sustentaram essa economia.
Em Itapeva, o Quilombo do Jaó é uma comunidade remanescente diretamente ligada à fazenda. Não há fazenda sem quilombo, nem quilombo sem fazenda. Essa relação de afeto, pertencimento e continuidade é o coração do filme — uma narrativa sobre o trabalho, a fé, a dignidade e, sobretudo, o direito de lembrar.


FOLHA DE PIRAJU – Como foi o processo de filmagem?
ADRIANO – Foram dias intensos e de grande envolvimento emocional. O processo começou com o roteiro, que buscou equilibrar o rigor histórico com a dimensão poética das imagens.
Cada plano foi pensado para valorizar o território como testemunha viva da história. Escolhi cenários emblemáticos da Fazenda Pilão D’Água: o monjolo, símbolo da subsistência e do trabalho manual; a capela, espaço de fé; os muros de taipa erguidos por mãos escravizadas, que cercavam toda a propriedade; a Casa Grande e a senzala, que revelam a estrutura social da época; e o bosque das araucárias, metáfora do tempo e da memória.
Esses lugares não são apenas cenário — são presença, são vozes. Filmá-los foi mais do que registrar: foi escutar o que ainda pulsa entre as ruínas e permitir que a história voltasse a respirar.


FOLHA DE PIRAJU – O filme conta com participação especial, certo?
ADRIANO – Sim. A jornalista e escritora Eliana Alves Cruz, vencedora do Prêmio Jabuti, participa do documentário com um olhar singular sobre ancestralidade e memória.
Sua produção literária investiga trajetórias negras, apagamentos históricos e a reconstrução de identidades silenciadas.
A presença de Eliana amplia o diálogo do filme com o país. Ela conecta a história local de Itapeva ao contexto mais amplo da resistência negra no Brasil, dando à narrativa profundidade e alcance nacional.
Sua voz traduz, com sensibilidade, o que o filme busca revelar: a memória como forma de resistência e de reexistência.


FOLHA DE PIRAJU – Qual a importância da Fazenda Pilão D’Água hoje?
ADRIANO – A Fazenda Pilão D’Água é um patrimônio público tombado, mas gravemente ameaçado. Suas estruturas estão em ruínas, mas seu valor histórico e simbólico é imensurável.
É uma das últimas fazendas de invernagem da antiga rota dos tropeiros, ponto de descanso e engorda de muares que seguiam do Sul ao Sudeste.
Mais que um marco do tropeirismo, ela testemunha o encontro de povos e culturas — tropeiros, indígenas e escravizados — que formaram a base da identidade regional e contribuíram para a própria formação cultural do Brasil.
Preservar a Fazenda é preservar a história do trabalho, da fé e da resistência afro-brasileira. Hoje, mais do que atenção, ela precisa de um esforço coletivo entre poder público e sociedade civil para sobreviver e continuar sendo um espaço de memória, pertencimento e educação.


FOLHA DE PIRAJU – O que o público pode esperar da exibição?
ADRIANO – O público pode esperar um filme feito com afeto, precisão histórica e senso de urgência. É uma experiência sensorial e reflexiva, que mistura pesquisa, imagem e emoção para provocar um olhar mais atento sobre a memória local.
Memórias da Cidade foi realizado por meio da Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura e mostra o quanto o audiovisual pode ser uma ferramenta poderosa de transformação.
A obra busca inspirar outras cidades a investirem em seus próprios registros e narrativas, porque preservar a memória é também um ato de futuro.


FOLHA DE PIRAJU – E como você define o papel do documentário dentro da sua trajetória como diretor?
ADRIANO – Memórias da Cidade representa um marco pessoal e criativo. É a síntese do meu desejo de unir arte, pesquisa e compromisso social.
Sempre acreditei que o audiovisual tem uma função que vai além da estética: ele escuta o que foi silenciado e dá forma ao que a história oficial tentou apagar.
Minha trajetória vem sendo construída entre diferentes linguagens — dirigi o curta Seraphim, com Paulo Betti, e fui coautor, ao lado de Aguinaldo Silva, da novela O Sétimo Guardião, na TV Globo.
Essas experiências me ensinaram sobre a potência da narrativa como instrumento de transformação, seja na televisão, no cinema ou nas comunidades.
Sou um observador da vida, das pessoas e da força que existe na vivência coletiva. As grandes histórias estão nelas — nas vozes anônimas, nas lembranças guardadas, nas paisagens que resistem.
Acredito profundamente que a sociedade civil, quando unida, tem poder para transformar o ambiente em que vive.
Esse filme é, acima de tudo, um gesto de escuta e reconhecimento. Ele reafirma que a memória é um ato de justiça — e preservar o passado é, em essência, uma forma de cuidar do futuro.

A casa grande da fazenda

 

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