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O Casarão (parte 3) por Carlinhos Barreiros

Postado à, 328 dias atrás | 6 minutos de leitura

O Casarão (parte 3)   por Carlinhos Barreiros
Descendo a escada da cozinha que dava para o quintal, a gente virava e dava de cara com os porões da casa dos Maluly na praça Ataliba Leonel em Piraju: três, na verdade, um bem diferente do outro. O primeiro, com dois cômodos, parecia abrigar em seu interior uma enorme cisterna que deveria ser, eu imagino, a caixa d´água. Será que a água, então, subia de baixo para cima? Bem, piscina ou ofurô é que não era, já que aquele tempo ninguém sonhava com isso. Anexo ao lugar com a enorme caixa cheia de água, existia um comodozinho simpático, aconchegante, com vidraças dando para o quintal e que Hamilton usou por uns tempos, como local de estudo. 
Logo após, seguindo-se adiante, e sob arcos, ficavam os porões mais expostos, sem portas e que iam até o fim, onde se podia enxergar a calçada. Bastante sinistros e com chão de terra, adentravam as fundações da casa, ficando cada vez mais baixos. Na nossa imaginação, aqueles seriam os porões da desova, e se tivesse algum corpo ou esqueleto escondido, era lá que estariam. As lendas sobre os escravos ou os índios mortos por Ataliba Leonel continuava repercutindo em nossa imaginação. Mas que nada. O máximo que eu e Hamilton encontramos, escavando o chão duro algumas vezes foi um fragmento de osso, que tanto poderia ser humano como de uma galinha. Mas será que era osso mesmo? Na época da descoberta parecia, mas agora, tanto tempo depois, tenho minhas dúvidas. 
E nunca é demais lembrar que à época de Ataliba Leonel nem existiam mais escravos, libertados mais de cem anos antes. E nunca se soube que entre os criados ou criadas no solar dos Leonel houvesse algum índio. Então, quando os fatos falam mais alto, ficamos mesmo com as lendas, já que os segundos porões eram perfeitos para isso. E se há por lá alguma ossada, deve estar muito bem enterrada, à prova de qualquer inquilino que porventura possa caminhar pela parte de cima. Como os porões do meio davam vista para a rua, com seus respiradouros de ferro, que estão lá até hoje, eu e Hamilton, para nos divertir, às vezes colávamos uma ou duas moedas na calçada e ficávamos escondidos dentro do porão, vendo pelos respiradouros as pessoas que passavam se agacharem para tentar resgatar o dinheiro colado ao chão. Geralmente éramos desmascarados pelas nossas risadas do lado de dentro, quando alguém não gostava da brincadeira e começava a esbravejar e xingar.
Não entro no casarão há muito tempo. Sei, por outras pessoas, que seu interior está bem deteriorado. O belo vitral de vidros multicores no hall adjacente ao quarto de Issa e Julieta foi completamente estilhaçado por uma tempestade de granizo, só sobrando cacos do original. O teto já desabou e foi consertado, as belas venezianas de tabuinhas das janelas dos quartos estão todas capengas e faltando pedaços. Sua cor original perdeu-se no tempo, haja visto a quantidade de demãos de tinta que sufocaram a pintura original. Um dos netos do casal original ainda mora por lá, tentando, a duras penas, preservar o que resta de pé nesse marco histórico. 
Há alguns anos iniciei, com Sumaya Maluly, uma verdadeira epopeia junto às autoridades locais para que o casarão fosse tombado como monumento pirajuense. Tudo em vão: os aspones do poder, com sorrisos melífluos e sinuosos, até nos ouviam mas descartavam imediatamente a ideia, afirmando, entre outras coisas, não ser de interesse do município. Eu e Sumaya batemos perna, conversamos com quem achávamos que devíamos para tudo dar em nada. Enfim, como antes, o casarão de Ataliba Leonel foi posto à venda pelos remanescentes da família Maluly, situação em que se encontra até o dia de hoje, quando você conheceu uma parte minúscula de sua história.
Casas são como gente, tem vida própria e conservam os miasmas de todos os seus habitantes que por ali passaram, choraram e sonharam. Todos os dramas, tragédias, alegrias e momentos felizes vividos por todo mundo que ali morou ainda se encontram por lá, num registro mudo do qual apenas o próprio casarão, em sua eterna vigília, pode dar ciência. Qual será, então, o destino do que eu prefiro chamar de Casarão dos Maluly? Será tombado, finalmente? Vai virar um hotel de luxo? Será futuramente a sede de algum banco famoso? Ou algum milionário excêntrico o comprará e fará a restauração, pedra por pedra?  Aqui, como em outras indagações sem muito sentido, fico com os versos de Bobby Dylan: “The answer, my friend, is blowing in the wind” ou A reposta, meu amigo, está sendo soprada no vento.