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MEMÓRIAS DO CASARÃO – 2, por Carlinhos Barreiros

Postado à, 346 dias atrás | 8 minutos de leitura

MEMÓRIAS DO CASARÃO – 2, por Carlinhos Barreiros
Nas décadas de 50 e 60 do século passado telefones
eram artigos de luxo. Ninguém tinha, por causa do
preço elevado. O aparelho dos Maluly ficava na sala,
fixo na parede, preto e com um círculo cheio de
números para discar. Hoje, seria descrito como
retrô. Ou vintage. Julieta Maluly estava sempre com
ele ao ouvido, escutando atentamente ou
disparando ordens. Esbelta e elegante em seus
vestidos e sempre com um cigarro nas mãos, já era
a anunciação do protótipo da mulher de negócios.
Adorava quando ela me pedia para fazer alguma
ligação para ela. Ou atender outra. Nós, em casa,
só viríamos a ter telefone de verdade uns bons vinte
anos depois dos fatos aqui descritos.
Gostava de ser o pajem de Julieta. Ou o seu valete.
Fazia as coisas para ela com o maior prazer. Me
mandava sempre comprar um maço de cigarro ali
na esquina, no Bar Continental: o onipresente Luiz
XV, que nem existe mais. Ou o Continental sem
filtro. Às vezes me mandava fazer pequenos
negócios de banco, na outra esquina, o antigo e
extinto Banco Commercial (assim mesmo, com dois
emes) que ficava ali onde hoje é o Itaú. Zelosa da
família pelo lado dos Simão, a matriarca sempre
deu guarida ao irmão Jamil, de meia idade e que
vivia de vender meias e outras quinquilharias
masculinas de porta em porta, naquilo que naquele
tempo se chamava de “mascate”. Jamil inclusive
chegou a morar, por uns tempos, num dos fatídicos
porões do casarão, o último da esquerda, que tinha
alguns ares de apartamento, ao contrário dos
outros, de fluidos sinistros.
 
Voltemos o foco agora a Issa Maluly, o fazendeiro:
de calças bombachas largas, botas de cano alto e
cinturão, “seu” Issa era o típico Barão do Café na
época. Mesmo com duas grandes fazendas para
tocar, não perdia a alegria de viver. Bonachão e de
boa índole, gostava de ficar ouvindo, à noite, as
emissoras de rádio de seu país distante, a Síria,
sintonizadas em Ondas Longas na maravilhosa rádio
vitrola de última geração que os Maluly tinham na
saleta de entrada da casa. Chegado num carteado
(junto com o irmão Mussa e outros compadres)
costumava transformar a ampla mesa da sala
principal numa animada mesa de jogo, cujas
peripécias costumavam se estender até alta
madrugada. De todos os filhos, Lúcia foi a única que
herdou a paixão do pai pelas cartas. Durante toda a
sua vida, enquanto viveu, Lúcia Maluly virou uma
lenda nas mesas de baralho: ganhou e perdeu
fortunas, sem jamais abandonar o vício que
absorvera observando os velhos senhores do jogo
na sala de sua casa.
Uma vez, em Itararé, jogando caxeta com uns
malandros, comecei a despertar desconfiança, já
que não perdia nunca e só batia com as dez.
Quando os carinhas começaram a querer se invocar,
expliquei, calmamente, que tinha aprendido a jogar
com Lúcia Maluly e que ela tinha me ensinado a
nunca bater com as nove. Diante dessa fala, um
mar de silêncio e respeito invadiu a acanhada sala
de jogos: a fama de Lúcia, como jogadora, já tinha
chegado até lá e todos conheciam seus dotes e
truques no carteado. E eu, como seu recém-
nomeado (e descoberto) discípulo, só granjeei o
respeito da turma. Grande Lúcia, eterna onde quer
que esteja.
 
Uma vez, quando fui fazer o Tiro de Guerra, lembro
que não tinha dinheiro para comprar a farda: 11
Cruzeiros (provavelmente era essa a moeda da
época), quantia que hoje, provavelmente,
equivaleria a uns mil e cem reais (eu estimo). Com
a maior cara de pau, fui pedir o dinheiro
emprestado ao “seu” Issa, que só não me deu
prontamente o total como sempre se recusou a
receber, quando fui pagá-lo. Uma alma gentil e
nobre, como mostra esse caso específico. Quando a
filha mais velha dos Maluly, Lurdes, casou-se com o
economista espanhol Francisco Cardiel, a família da
noiva preparou uma grande festa no quintal do
casarão. Mais de cem convidados compareceram,
entre família e amigos do casal.
Uma enorme mesa comprida foi preparada sobre
cavaletes, com os noivos à cabeceira e raras vezes
Piraju havia visto uma comemoração tão bem
organizada e servida. O que me marcou dessa
ocasião festiva é que foi a primeira vez que comi
creme de aspargos (servido como entrada) num
banquete que fez história e deixou saudades. Outra
ocasião notável no casarão dos Maluly era a ceia
natalina: na sala principal, sob o grande lustre, uma
mesa farta abarrotada de vários tipos de iguarias e
bebidas era servida à família e poucos convidados.
Foi ali que comecei a conhecer os diferentes tipos
de frutas típicas do deserto, secas, que “seu Issa
mandava vir de São Paulo para a ocasião, decerto
para matar um pouco as saudades da distante Síria:
amêndoas, tâmaras, avelãs, nozes e castanhas,
sem contar os deliciosos doces típicos, folheados e
escorrendo mel.
Com o término do ginasial, Hamilton foi para São
Paulo, estudar no Colégio Arquidiocesano e depois
no Mackenzie. Os Maluly compraram um
 
apartamento na Avenida Angélica, em Higienópolis
(que tinha um salão de chá embaixo, o requintado
La Fontaine), bem próximo à Avenida Paulista e
para onde Sumaya se mudou. Mas antes de morar
em São Paulo, bem antes, Hamilton e eu
exploramos os porões do casarão de Ataliba Leonel
na praça, onde descobrimos um dedo de esqueleto
e outros tesouros. Mas isso fica para a terceira
parte dessas crônicas, na sua conclusão. Até lá.
 
► O autor deste texto sobre Rita Lee, Carlinhos Barreiros:  é escritor e jornalista colaborador de várias plataformas digitais.  Escreveu o livro “Insânia, o lado escuro da Lua”  e prepara uma nova obra para breve.  Já venceu concurso de contos e foi colaborador dos jornais Folha de Piraju, Observador e Jornal da Cidade. 

Continua colaborando de forma especial com a Folha de Piraju. 

É colaborador regular do blog  Farol Notícias de Itaí. Também escreve para  um projeto da Faculdade de Comunicações da USP.