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Voltar Só a luta amada evita a ditadura. Por Fernando Gabeira, by Chumbo Gordo

20/JUN - 20
JUN
Só a luta amada evita a ditadura. Por Fernando Gabeira, by Chumbo Gordo

Da minha parte, a situação é clara. No passado, deixei o país. Hoje, sinto que o país é que está me deixando, dissolvendo-se numa bruma viscosa, tornando-se irreconhecível. Por isso, quando um grupo gaúcho sugeriu a ideia de uma luta amada, disse imediatamente que para mim caía como uma luva…

PUBLICADO ORIGINALMENTE EM O GLOBO E NO SITE DO AUTOR,
www.gabeira.com.br,  EDIÇÃO DE 15 DE JUNHO DE 2020 e no site CHUMBO GORDO


Meu texto sobre a urgência de uma resposta coletiva aos avanços autoritários de Bolsonaro alcançou muita gente de minha geração.

Felizes com a ideia, todos se preparam, sabendo que o bastão há muito foi passado para as novas gerações. Não importa a importância do papel, o que importa é estar presente.

Da minha parte, a situação é clara. No passado, deixei o país. Hoje, sinto que o país é que está me deixando, dissolvendo-se numa bruma viscosa, tornando-se irreconhecível.

Por isso, quando um grupo gaúcho sugeriu a ideia de uma luta amada, disse imediatamente que para mim caía como uma luva.

Durante muitos anos, ao lado de outros, construímos uma legislação ambiental para proteger nossos recursos naturais. Relatei, por exemplo, o projeto do Sistema Nacional de Unidades de Conservação, conhecido como Snuc. Parece um nome de cachorrinho, Snuc, mas encerra uma realidade de florestas, montanhas, rios e manguezais que visito com frequência.

Quando vejo que estão querendo desmontar a legislação, aproveitando-se do nosso foco na pandemia, quando ouço que querem fazer uma boiada passar sobre a tenra grama de nossa rede de proteção, sinto claramente que estão nos levando o Brasil.

Ao saber que Bolsonaro decapitou a direção do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o Iphan, apenas para atender ao dono da Havan, sinto um calafrio. É um homem que vendia produtos chineses e tem uma cadeia de lojas com uma cafona Estátua da Liberdade na porta.

O Iphan foi dirigido por intelectuais como Rodrigo Melo Franco, Aloísio Magalhães, e Bolsonaro escolheu agora a esposa de um dos seus seguranças, para tomar conta de 1.300 bens materiais e 25 mil sítios arqueológicos. Foi barrado pela Justiça Federal.

Bolsonaro acha que nosso patrimônio se confunde com o que ele chama de cocô de índio cristalizado.

Das estátuas do Aleijadinho às pinturas rupestres da Serra da Capivara, é desse rico conjunto que extraímos o sentido de identidade nacional e também postos de trabalho para muita gente. Passam com uma boiada sobre os bens naturais e com um bando de javalis sobre nossos bens culturais.

Pena que os militares tenham embarcado nessa canoa. São potenciais interlocutores. Conhecem bem o Brasil. O escorregão geográfico do general Pazuello foi apenas um acidente isolado.

…Como não suprimir o “r” das lutas passadas e chamar isto de uma luta amada? Como não compreender que todas as gerações pretéritas nos lembram de que o Brasil existe para todo o sempre, e que reinventá-lo depende de nós?

Não sei se os militares estão usando Bolsonaro como um bode na sala, para depois se apresentarem como moderadores no pântano que ele criou. Ou se simplesmente se deliciam com o acúmulo de soldos e salários como os militares da Venezuela.

Em ambos os casos, estarão perdidos para sua tarefa maior, a defesa nacional. Não importa quantos aparatos de guerra possam comprar, se não têm mais o respeito do povo brasileiro.

De que adianta entrar para o Ministério da Saúde e empilhar cadáveres com a naturalidade com que pintam as árvores de branco?

Nossas populações indígenas estão sendo dizimadas pela Covid-19, nossa juventude negra massacrada pela opressão policial, nossas favelas organizam-se como podem para substituir um governo ausente na pandemia, ausente em todos os tempos.

Só não saímos às ruas porque o vírus tem sido implacável com os mais velhos. Por mais que Bolsonaro arme seus aliados e os filhos lutem para trazer do exterior novos brinquedos de morte, é preciso viver um pouco.

Na verdade, é preciso cautela nas ruas, pois todos precisam estar vivos. Cada um de nós que resiste é um pedaço do Brasil que pede socorro à humanidade, ao que resta de humano na humanidade.

Nem todos sabem como este país é grande, diverso, solidário, magnífico em sua beleza. Impedir que se dissolva nas mãos de vendedores de bugigangas, grileiros, racistas, incendiários é a grande tarefa de construir uma civilização tropical onde querem apenas pasto, fuzis, asfalto, carros e eletrodomésticos.

Como não suprimir o “r” das lutas passadas e chamar isto de uma luta amada? Como não compreender que todas as gerações pretéritas nos lembram de que o Brasil existe para todo o sempre, e que reinventá-lo depende de nós?

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Fernando Gabeira*– é escritor, jornalista e ex-deputado federal pelo Rio de Janeiro. Atualmente na GloboNews, onde produz semanalmente reportagens sobre temas especiais, por ele próprio filmadas (no ar aos domingos, 18h30, e em reprises na programação). Foi candidato ao Governo do Rio de Janeiro. Articulista para, entre outros veículos, O Estado de S. Paulo e O Globo, onde escreve às segundas.

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