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Voltar SE EU FECHAR OS OLHOS... por  José Carlos Santos Peres

14/SET - 14
SET
SE EU FECHAR OS OLHOS... por José Carlos Santos Peres

Avaré apaga velinhas. São 160 anos, desde o dia em que posseiros aqui chegaram para a primeira cruz, no alto da aldeia. 
O que são 160 anos? Um cisco, na eternidade do tempo... 
Ainda ontem autoridades queimavam documentos referentes ao período da escravidão, “para apagar essa página negra da nossa história”. 
Parece que foi ontem a Avaré da Outrora Rio Novo do Maneco Dionísio; a Maria-Fumaça se espichando à distância, charretes sacolejando pelas pedras desiguais do centro, e o vaivém das moçoilas pelo largo do Largo São João... 
Parece que foi ontem de galos pelos quintais, do agridoce pelas manhãs, do leite na soleira; da fumaça da Anderson Clayton. E animais pastando solenes pelos terrenos baldios.
Ontem, o cine Santa Cruz; as normalistas do Coronel, o Preparatório na Escola Artesanal... As sessões às quartas, no CAC; o carnaval no Clube dos Japoneses, a bola dividida no derby entre alvinegros e tricolores; Guerino e sua banda, Bicicleta Phillips Aro 28; cigarro Pulman, namoro no hangar e rabeira de caminhão.
Parece que foi ontem. 
Mas faz tanto tempo... 
Um tempo em que Avaré cabia na palma do olhar. Um tempo em que os anos pendiam lentos, monótonos, pesados. 
E então éramos felizes, e não sabíamos.
 
Crônica
 
UM CANTO SÓ
 
José Carlos Santos Peres
 
“ (...)Grito, fruto obscuro/ e extremo dessa árvore: galo.// Mas que, fora dele,/ é mero complemento de auroras.// (Gullar).
 
Um galo canta! Conheço-o de outras madrugadas. E por conhecê-lo tenho notado uma diferença crucial em seu comportamento: o canto já não é o mesmo. Mas é o mesmo galo, que a terra-batida dos meus ouvidos não me engana jamais.
Antes o bicho soltava o gogó buscando a nota mais alta; havia todo um floreio, principalmente quando, ao sentir que estava para perder o fôlego, reconstruía a tessitura, puxando o acorde para um tom mais baixo para, a partir daí, espetacularmente, retornar ao ponto mais alto, fechando de maneira triunfante, o seu cantar. 
Hoje... 
Hoje, é de dar dó. 
O canto é curto, entrecortado, machucado, dolorido... Um canto apressado que não alcança as notas mais altas. 
É canto de galo-operário que sabe de sua obrigação e a cumpre, como se estivesse a libertar-se daquela responsabilidade o mais rápido possível, para então enfiar a cabeça à plumagem e retomar o sono.
Ademais, o “meu galo” nem espera a plenitude do raiar do dia. Numa dessas madrugadas o infeliz deu de cantar às duas horas! Perdeu a hora, claro. Num outro dia soltou a voz às seis... Tarde demais! Então foi rapidinho: três ou quatro cantos e, em seguida, emudeceu-se completamente. Acho que ficou envergonhado pelo papelão que cometeu. Um galo que se preza não perde a hora. Jamais!
Sei bem o que entristece o galo do meu bairro: não deve ser fácil a um galo velho cuidar de um harém, até porque galinha é sempre galinha; um bicho que gosta de galinhar até com o pato, o ganso, o peru, e com o que encontrar pela frente. Piscou e ciscou, ataca. Galinha que não nega a raça é vaca na matéria. O galo que dê seus pulos.
Mas o que deve ter desestimulado ainda mais o meu amigo é que hoje o seu canto é solitário. É isso! Antes, havia concorrentes e a possibilidade do contraponto ao seu cantar; então ele cantava para ser reconhecido, dava um tempo para ouvir a réplica e devolvia na tréplica, com estilo. Ficava assim, como no poema do Cabral, participando de uma teia de cantos, que se estendia pela cidade. E hoje?
Hoje o galo do meu bairro canta para o nada, para as estrelas tardias, para os quintais vazios... Um canto dramaticamente solitário. Canta a palo seco, esse canto “sem guitarra; sem o cante; o cante sem mais nada”. 
Um canto que se perde na imensidão da madrugada, sem retorno, sem outros quintais... Pena ele não saber que de algum lugar alguém o ouve, pouco se importando com a rouquidão, com o seu relógio biológico desgovernado. 
A presença do meu distante amigo, a certeza de sabê-lo num quintal qualquer me anima e reconforta, por que aquele canto, mesmo entrecortado e sofrido, tem o dom de me remeter à infância... 
No meu peito o canto quebrado do galo ecoa.