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Voltar O cenário das nossas lembranças, por Maria Ângela Ramos

14/AGO - 14
AGO
O cenário das nossas lembranças, por Maria Ângela Ramos

Um dia desses fiz um pedido aos moradores que chegavam à antiga casa de minha bisnona Rita. Pedi meio sem jeito se poderia entrar lá e matar a saudade de um cenário de muita alegria. Rua Joaquim Teotônio Araujo com a Renato Dardes.
É na mesma cidade em que vivo há 54 anos, Piraju. Entrei na casa não a procura apenas de um tempo feliz, mas buscando as sensações de acolhida, lucidez e segurança que testemunhei e vivenciei ali e que trouxeram muito do contentamento de hoje.
Tempos de não agressão, de paz, em que havia espaço na vida de todos para a bondade e a compaixão. Livre de idéias pré concebidas e junto com a flor de cera que crescia num pequeno jardim, uma raridade, aumentava e se cultivava ali internamente entre as pessoas, a realização de sermos ligados por um amor regado a sol e ar fresco. Dona Rita fazia todos felizes pela sua calma, silêncio, um pequeno sorriso e gentileza. Nunca a vi  fazer ninguém sofrer em atos ou palavras como se tivesse uma essência divina.
Uma boa mulher que fazia crescer humanidade entre todos. Nenhuma rudeza.
Pessoas assim não fazem guerras,nem barulho, nem confusão.
É como se ela estivesse treinada em atitudes positivas e virtuosas. E assim aquela grande casa na minha memória de tantos quartos e jogos de amarelinha na calçada, agora parecia mais uma casa de brinquedo. Eu me sentia uma gigante perto daqueles cômodos todos encolhidos.  
E percebi o hall onde ela montava seu presépio gigante e que sempre teve vida própria para nós que moramos uns longos tempos com ela. Seus personagens andavam um pouco todo dia, até o Natal, ela os movimentava de madrugada imagino e nos dava a sensação de que eram reais e talvez o fossem, penso hoje, pela devoção inabalável dela no Sagrado Coração de Jesus e Maria. Talvez tenha sido com sua amiga, inquilina e vizinha  dona Verônica uma das primeiras integrantes do Apostolado de Oração na cidade de Piraju.
Posso dar uma pequena pausa para falar de Dona Verônica mulher de olhos de um azul mar, quase violetas como de Sophia Loren, de coração gigante, trabalhadeira, que só ela e que deixou muitos descendentes na cidade, entre eles seu neto o Tuta (Carlos Medeiros que foi meu colega na polícia científica por muitos anos). 
Nunca esqueço da sua imagem segurando uma vela nas vigilias de Páscoa em frente a Igreja Matriz com sua fita vermelha, saia preta e uma blusa de algodão com manga  3 quartos engomadinha. Chamava minha bisa de dona Rita.
O presépio de dona Rita era visitado pela vizinhança.  Sempre colocado  sobre a areia branquinha trazida por ela quando esteve em  Cabo Frio e havia no caminho até a manjedoura vários personagens: pastores, mulhereres segurando balde de água na cabeça, mais pastores e os reis magos. Ela fez ainda com espelho um oásis no trajeto que dava numa ponte. Ela amava pontes.
Entrar ali, mais uma vez, naquela casa de tantas impressões,não me deixou nem triste nem saudosa, apenas me  trouxe ao coração uma delicada gratidão sentindo quase a presença de seres amados qua ainda povoam meu imaginário e nos quais ainda hoje tomo refúgio. 
Como se ouvisse os passarinhos que ela tratava no terraço de onde se vê o rio pendurados bem alto numa gaiola que ficava ao ar e o vento balançava, ficavam  ao redor o gato Bolinha, o cachorro Bronze e parece que ainda sou capaz de ouvir e ver o lampejo rápido da tiarada e primos que povoavam os almoços, lanches e jantares com seus barulhos de festança.  Nada estava mais ali como antes, todos partiram, todas as aparências e rotinas desfeitas como um filme que assistimos ao vivo, sem reprise. 
Parada em meio ao corredor de tantas noites de meia luz que tinham sido desfrutadas por nós, e no refúgio de tantos  santos em quadros, herança dividida  entre algumas de suas netas quando ela se foi, inclusive eu, percebi que ainda busco me ver naquela mulher que parecia frágil, costurando seus fuxicos para enfeitar as almofadinhas do sofá, ou aguando suas enormes samambaias e replantando seus vazos deavencas.
Do alto da esquina, no topo da ladeira do Bairro Alto, de onde se avista a Igreja Matriz de São Sebastião (santo  presente em retratos e estátuetas em muitos cômodos daquela casa), recordei-me dos estalos dos içás (formigões alados) que ouvia do quarto da frente onde eu dormia na infância e da música moderna e alta que nunca incomodou dona Rita nem a nós, e sempre vinha da casa que dava na janela do meu quarto tocada na casa do vizinho que tinha fama de psicodélico.  
Apesar da passagem do tempo e das coisas apagadas  pela impermanência, ali na esquina da rua do grupão, ainda anoitece a mesma noite, brilham na imensidão as mesmas estrelas  e o mesmo luar reflete tons de laranja no relógio da Igreja. Tudo na paisagem exatamente igual, não se sabe por quanto tempo.
E a vida segue ao amanhecer de todo dia. Apesar de nós, os que estamos aqui e os que não estão mais, de quem não nos esquecemos e com quem não sabemos onde e se um dia reencontraremos, e nem tampouco se tudo não passou de um sonho bom.
Seguimos até não poder mais construindo nossos mundos, dia após dias em histórias que queríamos que durassem para sempre, mas sempre em mudança e que somem com um piscar de olhos, como água numa cachoeira.
 
A autora Maria Ângela (Laka) é paulistana e vive em Piraju há 54 anos, cidade da família de seu pai.
Editora da Folha de Piraju e deste portal. Essas lembranças se referem a bisavó paterna
Maria Rita Sartori Alves Dattoli mãe se sua avó materna Maria Thereza Dattoli Ramos filha mais velha de 6 irmãs e um irmão.
O quadro abaixo, Jesus no Horto das Oliveiras, ficava na parede da sala principal da casa de dona Rita.
E na foto a seguir a autora ainda bebê, sentada na mesa da cozinha , sendo amparada pela bisnona Rita.
Assim como escreveu sobre dona Rita vem juntando material para escrever sobre outros personagens.